João Carneiro olhava a seca da caatinga com olhos famintos de criança. Três dias sem que a avó conseguisse nada além de farinha e água salobra do poço. Edite, sua irmã mais nova, já não tinha lágrimas e dormir era o único remédio para esquecer a fome. João caminhou na terra rachada sedenta e viu sua infância ser sugada pelas frestas da necessidade. O futuro era uma chuva distante que nunca chegava e mesmo assim esperavam. Avistou um pássaro verde caído no chão tentando escapar da morte. Viu o sofrimento nos olhos da ave e despertou mais uma vez com o corpo dolorido em cima daquela cama de hospital em seu velho corpo. O tratamento não tinha sido suficiente e estava distante demais de casa, de sua roça, de sua família. Um carro velho chegou próximo à casa e João avistou uma mulher descer e conversar com sua avó materna. Era Olímpia, irmã de João de um casamento anterior de seu pai e morava na cidade. “João, venha conhecer sua irmã, menino!” – gritou sua avó com Edite no colo. Olímpia fez um carinho na cabeça de João e entrou no casebre. Ela era uma mulher muito religiosa e orou a todo momento com a imagem de miséria que vivia aquela família. João com os olhos curiosos de criança viram as roupas bonitas de sua irmã e de seu esposo Miguel. Eles conversavam algo sobre a cidade e ajudar na educação dele e de sua irmã caçula. Despedir-se de sua avó e de seu mundo, apesar das dificuldades enfrentadas ali, foi muito triste. João abraçava sua irmã Edite e se agarrava a um passado que ficaria ali para sempre. Jurou que se encontraria novamente com a sua avó assim que ele soubesse como fazê-lo. Ainda não sabia como, mas o faria. Na estrada de terra, abraçado o tempo inteiro protegendo a irmã, João viu pela janela de vidro um pássaro verde. Um verde cor de sonho, assim como aquele que vira morrer. Voava feliz, parecia até sorrir. Na cabeça de menino João decidiu que era um pássaro apenas que o seguia. As asas eram mais rápidas do que as rodas do carro. Por isso o pássaro conseguia pousar em um galho seco ou em alguma cerca viva e avoar novamente sem perder João de vista. João despertou mais uma vez e viu seu corpo sem esperanças. Viu o pássaro verde na janela. Era o mesmo pássaro da sua infância distante, mas era João que o seguia. Após o último suspiro, levantou-se. Nenhuma dor sentia e agora seguiria o pássaro verde. Feliz por ter criado uma linda família e ajudado todos ao redor. “Vamos avoar, pássaro verde!”.

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*O texto “Última Lembrança” foi contemplado no Prêmio Nacional Off Flip, em 2021. Escrito em homenagem ao avô materno do autor, João Carneiro, faz parte de um projeto mais extenso de um futuro romance.

35 respostas

  1. Muito lindo ! Uma riqueza de detalhes e de afetividade. Me senti presente, em um local de acolhimento, ternura e saudade. 👏👏👏👏

  2. Uma poesia de verdade, realista, nostálgica, retrata a vida de muitos brasileiros.
    Mas o que me encantou foi o pássaro verde, que não sua infância lhe deu esperança,estando sempre com ele, e levando_o a voar na hora da partida.
    Muito bem vindo como livro.

  3. Paulo Esdras, você consegue, facilmente, nos atrair para dentro do texto com seu estilo e ritmo, fixando o cenário e ações em nossa mente. Um bom teaser para um possível longa-metragem, depois do romance publicado! Parabéns!

  4. ANA MARÍA MOURA LIMA
    Disse:
    Linda e emocionante história de um VITORIOSO de FIBRA!
    O que ratifica a teoria de que tenho: quando se tem BOA ÍNDOLE, As dificuldades fortalecem e moldam o BOM CARÁTER!
    João, retorna em Paz e pode dizer, a exemplo de Alexandre: VIM, VI E VENCI.
    Parabéns Esdras pelo relato!
    Parabéns Sandrinha, por esta Dádiva em forma de Pai! Sê grata a Deus.

  5. Linda e emocionante história de um VITORIOSO de FIBRA!
    O que ratifica a teoria de que tenho: quando se tem BOA ÍNDOLE, As dificuldades fortalecem e moldam o BOM CARÁTER!
    João, retorna em Paz e pode dizer, a exemplo de Alexandre: VIM, VI E VENCI.

  6. Que belíssima narrativa, quanta sensibilidade; as passagens fizeram -me lembrar de algumas letras de músicas do legado deixado por Luiz Gonzaga, texto fantástico. Digno de aplausos. Parabéns!!!!

  7. Essa realidade, tão bem registrada, leva nos
    a conectar com um cenário desafiador presente na memória de muito de nós nordestino. E melhor de tudo: a esperança surge como um caminho possível de ser alcançado.

  8. Essa realidade, tão bem registrada, leva nos
    a conectar com um cenário desafiador presente na memória de muito de nós nordestino. E melhor de tudo: a esperança surge como um caminho possível de ser alcançado.

  9. É uma bela e tocante narrativa que transita entre o sofrimento e a esperança, utilizando a figura simbólica do pássaro verde para representar a busca por liberdade, transformação e a continuidade da vida. A história de João Carneiro é, ao mesmo tempo, um relato de dor e resiliência diante das adversidades da vida, mas também de sonhos e reflexões sobre o que vem depois da morte.

  10. Texto rico em detalhes dentro de uma narrativa que me remete ao passado no município de Canudos, minha terra natal, quando ouvia relatos de Lampião e Antônio Conselheiro. Através dessa narrativa, lembrei de muitas passagens durante o período de vivência na “Terra Árida” e sofrida. Parabéns!!!

  11. Ao ler, tive o sentimento de que estava tbm na cena, vivenciando toda saudade, toda dor, todo sofrimento… E a mente vagueia imaginando essa história que poderá se tornar num lindo romance. PARABÉNS!

  12. Linda narrativa de una vida sofrida e com muitas despedidas. Vida de nordestino que é deixa sua origem em busca de uma condição melhor para retornar e ajudar os seus. É de emocionar…

    1. Que lindo texto, lembranças de uma vida sofrida do sertão e dos sacrifícios que eram impostos para se ter uma vida melhor. João está em paz. Parabéns Esdras, que venha o romance .

  13. Nosso mentores devem ser reconhecidos em tudo que conquistamos e em tudo que edifica o homem. Infelizmente não conheci seu tio!

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