“Vista bela é morar nas águas e visitar a terra”. Não estou no porto a ver navios, pois sou homem do mar e a experiência me fez atracar no vai e vem de cais em cais. Trabalho além porto há tempos e tempo ruim não me mete medo, mas sim inunda-me de aprendizado: Não há mar revolto que uma hora não se amanse.

Meu nome é José Porto, mas todos me conhecem como Zé Pescador. Minha família é toda do pescado há quatro gerações e fui o único a me especializar e até tirar carteira profissional na Marinha do Brasil. Um orgulho para meu avô já aposentado, José Bonleme, conhecido por Seu Zé do Farol. E é da Praia do Farol de São Tomé que nossos barcos partem ao azul profundo.

Tempestades, sol forte, longas semanas distante da costa são comuns em minha profissão, mas a tormenta que enfrentaríamos desta vez não era esperada por ninguém.

A nau foi rebocada por um trator fretado antes dos primeiros raios de sol. A tripulação contratada embarcou entusiasmada com a longa viagem, pois a maioria trabalhava normalmente próximo ao litoral com a pesca de camarão. Segui ao meu posto de costume e preparei as cordas e velas. Sentia-me já enjoado em terra firme por saudades do oceano e “barco parado não faz viagem”, como dizia papai.

– Zé, repara no horizonte! – gritou o capitão apontando na direção que seguiríamos.

– Parece que não teremos problemas até amanhã. – eu disse confiante na experiência.

O Capitão balançou a cabeça satisfeito com a concordância e seguiu ao leme. Apesar de alguns jovens marujos na equipe, todos eram safos. Sabiam bem o que fazer. O mar estava muito calmo quando saímos, mas do que o de costume e todos sabemos que depois da bonança vem a tempestade. Observei as aves marinhas na praia e era um sinal. Elas pareciam sentir momentos antes as mudanças climáticas e fugiam ao litoral.

O navio zarpou ainda no sol baixo. Outros pescadores ainda despertavam a areia na alvorada arrastando seus barcos ainda sonolentos. O vento frio soprou e, de vela cheia, o bulbo passou a rasgar o espelho d´água com velocidade.

Desviando das manchas escuras e de sacos plásticos abandonados, nossa embarcação ganhou rapidamente o habitat em que os grandes cardumes se escondiam: o alto mar. O oceano é um mistério e o bom velejador sabe respeitar os segredos das águas profundas. Quem não é da lida marítima imagina que o litoral é uma barreira intransponível, uma fronteira limite dos caminhos possíveis. Porém, para pessoas como eu, o litoral é o início da jornada, um portal que aproxima os povos que a natureza separou.

Os dias eram de muito trabalho. As redes algumas vezes voltavam à superfície com pouco aproveitamento, mas com a cancha do capitão, os locais dos cardumes eram mapeados e a maioria dos arrastos eram exitosos. Os graúdos eram acondicionados no porão refrigerado e os menores eram jogados novamente para pescaria futura se sobrevivessem à poluição e aos predadores.

Já as noites eram para descanso e conversas de pescador. Todos se reuniam para a boia na copa improvisada e depois muitos iam dormir. Eu gostava de subir ao convés e olhar as estrelas e a lua. Eram os astros que nos diziam o caminho e como seria o outro dia. Os povos antigos não possuíam nada além do céu para dizerem o que fariam. Talvez seja daí a ideia de que Deus more no céu e não nos corações dos homens.

Ainda na segunda semana de trabalho, uma tempestade desabou sobre o barco sem dar aviso. Nem a lua e nem as estrelas haviam se escondido na noite anterior. A chuva encharcou o barco e as ondas cresceram assustadoramente. Corri para ajustar as velas seguindo as orientações do capitão para que direção tomar. O mais importante nesta situação era buscar um caminho mais curto para deixarmos a tempestade e a sabedoria do capitão era imprescindível. Contudo, eu tinha que expor o mínimo possível o costado às ondas, pois, caso contrário a embarcação poderia capotar.

Infelizmente não existia uma receita exata e o instinto de um navegante poderia errar: as tempestades costumam mover-se ao sabor do vento e eles mudam constantemente seu paladar. Por isso cada tempestade era única e as mãos calejadas da tripulação e os olhos gastos do timão tinham que combinar com uma boa intuição para todos escaparem do maremoto.

Os ventos alcançaram força 6 – 22 a 27 nós – e alguns tripulantes já exaustos caíram sobre o próprio terror. Os trovões eram implacáveis e os relâmpagos tocavam a água, cada vez mais perto de nós. As ondas batiam na lateral do barco à bombordo, mas eu já tinha preparado o ângulo certo para não naufragarmos, aquartelando e fazendo o navio movimentar-se simultaneamente para o lado e para a frente, minimizando o impacto das fortes ondulações netúnicas.

Os relâmpagos paulatinamente ganharam distância, indício de estarmos saindo do olho ciclonal. Todos caíram no convés aliviados por estarem vivos e em segurança. Eu observava a beleza da zona do temporal à distância.

E assim sobrevivemos a uma das piores fúrias marítimas que pude presenciar. Barco avariado, mas mastro persistente. A resiliência da quilha e a força do leme levaram-nos de volta ao porto seguro.

Esteja calmo nas tempestades.

Seja resiliente nos problemas.

Forte para superar os obstáculos.

Feliz por resistir e ser uma pessoa melhor.

“Mares calmos não fazem bons marinheiros”, assim como a vida nos traz desafios constantes a fim de aprimorarmos e evoluirmos como velejadores de nossa história.

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