Revelação De Ser

Eu não sabia ainda, mas aquela noite seria marcante para sempre. Já tinha registrado aniversários, nascimentos, casamentos, mas atualmente só tirava fotos de objetos! Eram fotos artísticas baseadas no verso do poeta Manoel de Barros: “As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis”. Eu e meu parceiro atual, o fotógrafo, observávamos um bule velho deixado no lixo e registrávamos como se aquele objeto tivesse vida, tivesse alma.

Por muito tempo me sentia abandonada ou solitária, mesmo estando acompanhada por uma parceira ou parceiro. Sentia-me usada, explorada e depois colocada numa gaveta, escanteada. Mas com meu novo parceiro eu abraçava um propósito maior do que um evento pontual, um registro banal.

As coisas que eram fotografadas por mim deixavam de ser simplesmente coisas e se revelavam seres através da arte. Seres com passado, lembranças, sentimento até. Nunca esqueço de quando deixei para traz a fotografia de eventos e conheci meu parceiro com olhar artístico. Com ele aprendi a poesia existente no mundo. A sensibilidade de observar tudo com vida.

Lembro-me do dia que fotografei no ferro velho. Carcaças de carros que um dia tinham sido o sonho de alguém. Agora, enferrujados ao relento, ninguém sonhava com eles. Todas as fotos naquele dia foram em preto e branco. As cores nada diziam, apenas camuflariam o verdadeiro estado de espírito daqueles veículos.

Recordo-me também quando fomos tirar fotos de pneus velhos próximo a uma barragem. Estavam ali, abandonados, tristes, pois haviam sido usados e depois descartados daquela maneira. Mas, sem esperarmos, apareceram garotos correndo e cada um pegou um dos pneus e foram para a beira da barragem. Tirei algumas fotos e percebi que os pneus estavam sorrindo juntos com as crianças. As coisas querem viver, clamam por isso.

Chegou então aquela noite que mudaria minha vida para sempre. Eu e meu parceiro estávamos caminhando pela rua em busca de mais um objeto com necessidade de Ser através da arte. Já havíamos feito uma série inteira naquela rua com os postes solitários, segurando cartazes de cartomantes, animais perdidos, serviços variados. Agora, tentávamos encontrar mais objetos solitários. Quando um grito agudo de freio antecipou o estrondo da batida de um automóvel em alta velocidade. A batida foi tão forte que derrubou um poste que a parte da frente do carro abraçou. Um poste não mais solitário. Fomos correndo ao local e os passageiros muito jovens ainda estavam vivos, dois deles no banco do fundo ainda conscientes. Eles gemiam de dor e estavam presos nas ferragens. Ligamos para a emergência e nos aproximamos com cuidado por conta dos fios elétricos ameaçando caírem.

Em pleno desespero das vítimas e comoção de todos ao redor, um esguicho de sangue tocou em minha lente. O meu parceiro então me pegou firme e limpou com carinho a minha lente ensanguentada. Foi a primeira vez que ele prestou mais atenção em mim do que no objeto a ser fotografado. Mesmo sendo um momento breve, um flash, foi o suficiente para me sentir importante e parte de uma coisa maior. Sentia-me mais do que uma máquina fotográfica, enfim.

12 respostas

  1. O que dizer desta pequena/grande obra de arte? Nada! Quando se fala em Paulo Esdras, os nossos melhores autores vêm a tona. Manoel de Barros, com suas peripécias literárias, também faz parte deste ensaio, juntamente com tantos outros que inundam a mente de Paulo.
    Amigo, parabéns!

  2. Eu amei! Também tenho paixão pela fotografia. E sob essa ótica foi incrível a leitura. Parabéns, Paulo! Quisera eu ter esse talento para a escrita!

  3. Parabéns, Paulo. Depois de tudo, você se revela também um baita cronista. A sensibilidade do poeta, a imaginação do contista e romancista e a experiência singular do tato de suas retinas, estão presentes na Revelação de Ser, onde os objetos transcendem sua condição intrínseca e interagem com a realidade, tornando-a mais suave, eloquente e humanizada.

  4. Que interessante!!! Prende a atenção do leitor do início ao fim. A arte da fotografia sob a perspectiva da máquina fotográfica traz, nas entrelinhas, muitas reflexões sobre a maneira como enxergamos a arte de viver. Parabéns, Paulo!!!

  5. Paulo, a “Revelação de Ser” é uma crônica envolvente e profunda, que explora a beleza e o significado ocultos nos objetos e nas interações humanas. A câmera ganha uma dimensão humana e sensível, refletindo sobre o propósito e encontrando valor em sua relação com o fotógrafo. Esse texto toca nos conceitos de vida e importância de uma forma que nos convida a refletir sobre o valor das coisas ao nosso redor.

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