A história narrada aqui é sobre uma viagem arriscada de um povo que se embrenhou no sertão para levar o gado para o interior e acabou criando o povo sertanejo. Sem pejo, pedirei inspiração não aos deuses gregos, mas aos adorados pelos nativos e sertanistas ao atravessarem com muita fé e coragem vicentina pelo cabo da morte, tendo assim conquistado um chão tão longe, base da raiz nordestina. As lavouras de cana-de-açúcar estavam em seu auge, próximo ao litoral e seria preciso encontrar homens corajosos, capazes de enfrentarem o mal para atravessarem o gado além do sertão para encontrarem o Velho Chico, um sábio sobrevivente vivendo isolado no Oeste e que ajudava sertanejos destemidos em sua busca por um sentido para a vida.

O grupo criado foi batizado de “Os Sertanistas”, nove homens de armadura de couro que entregaram suas vidas, montados em seus cavalos preparados para uma aventura incerta. Eram vaqueiros acostumados não apenas com a lida do gado, mas principalmente com a sobrevivência fora do litoral onde o sol passa rente. Cada um deles recebeu a alcunha de seu estado: Bahia era o mais experiente e mais velho deles, contudo possuía uma força brava que superava a de muitos dos jovens. Paraíba era destemido e sempre seguia à frente do gado sozinho para encontrar perigos ou desvios pelo caminho. Maranhão era o vaqueiro que ficava atrás, pois era o mais rápido e ativo e poderia alcançar algum animal fugitivo. Alagoas era o mais valente e responsável pelo acampamento nas paradas, se enfrentamento preciso fosse era o melhor com as armas. Sergipe cuidava dos novilhos e do gado era doutor, também responsável pela comunicação através do berrante encantador. Piauí tinha como trabalho comunicar aos demais vaqueiros as informações passadas por Paraíba do que viria pela frente, era letrado e lia os cordéis nos descansos para aliviar a mente. Pernambuco era um excelente companheiro de viagem e com sua viola altiva nos momentos de parada acalentava os corações da comitiva. Os vaqueiros mais habilidosos nos trabalhos com vacas leiteiras eram Rio Grande e Ceará. Este último era também o que mais entendia dos gados de corte, além de ter a fama de ser o mais bem-humorado da caravana. Quatro ajudantes também faziam parte do grupo nesta empreitada, cães experientes no manejo com o gado: Tubarão, Cerrado, Seringueira e Pãozim.

Eles não sabiam, mas os deuses estavam decidindo sobre a aventura. Tupã foi totalmente contra a jornada. Muitos índios poderiam perecer com as armas sertanistas ao protegerem a manada. Santa Maria argumentou que os futuros sertanejos surgiriam daquela marcha, com sangue indígena, branco e dos filhos D´África. Também foi a favor dos Sertanistas a deusa Iara. Prometeu ajuda-los a alcançarem o rio de sua morada. O guia Boiadeiro de maneira curta defendeu a lida e que em vida pôde reconhecer o valor da labuta. Jesus Cristo abençoou a trilha de sacrifícios e disse que desde o início estaria com eles. Oxalá concordou e fez coro com o Cordeiro de Deus. Sugeriu também abrirem os caminhos do panteão inteiro. E assim foi feito, ao final até Tupã se convenceu da importância dos sertanistas irem além, com todas as divindades juntas disseram amém. Os Sertanistas já haviam do terreno das usinas próximo ao litoral partido com um rebanho de centenas de cabeças rumo ao Velho Chico. O aboio quebrava o silêncio e direcionava o grupo no mesmo trote noite e dia, pois seu canto mágico encantava e acalmava o gado que seguiam a melodia:

Êêêêêêêêêêê, ôôôô boi

Êêêêêêêêêêê, ôôôô saudade

Quando a vaca berrou recordação do passado

Vou falar do meu curral sertão ausentado

Neste momento eu lhe falo com esta moda pra ditado

Vejo um cavalo bonito passando atrás do gado

Ô boi e ô!

O Nordestino que sai em busca da felicidade

E chegando no litoral com alta capacidade

E enfrentando a vida. Esta é a realidade

Pode até morrer mas não esquece da saudade

Ô boi e ô!

Hoje eu viajo aboiando numa aventura arretada

Lembrando quem já fui eu na beleza do passado

conhecendo a capital, a cidade eldorada

Mas eu não esqueci nunca da minha terra adorada

Ô boi e ô!

A tradição de minha terra, cavalgada e São João

Corrida de argolinha ficou nesta recordação

É gente de toda parte que passou no meu coração

Brigando e valorizando o jeito do meu sertão

Ô boi e ô!

Por isso eu vou dizer com toda minha verdade

Vou voltar pro meu sertão, lugar da simplicidade

Manejando o gado pelos espinhos da idade

Vou cantando e cortando a caatinga da saudade

Ô boi!  *

(* Aboio popular de autor desconhecido)

E as cabeças de gado seguiam hipnotizadas pelo canto e pelo berrante, cercados por Tubarão, Cerrado, Seringueira e Pãozim. Os sertanistas sabiam dos grandes desafios à frente até chegarem ao objetivo e estavam preparados caso tivessem que confrontar o pior. Estavam ao redor da fogueira em uma das noites e Bahia lembrou:

— Conheci certa feita na região das Minas um vaqueiro conhecido por João Riobaldo. Ele disse que atravessou o sertão ao norte das Minas e a seca por lá também era como a caatinga: parece morta, mas ressurge viva. A travessia do Grande Sertão por ele narrado, levou toda uma vida. Enfim, entendeu o propósito de vencer a aridez da lida.

No meio da noite, alguns índios atiraram pedras em direção à fogueira e os sertanistas os espantaram com tiros ao alto.

Tupã, inconformado com a afronta, foi até Yemanjá convencê-la a fazer algo contra o grupo com o argumento que afastando-se do mar, os sertanistas proporcionariam o afastamento da fé na rainha dos mares. Os dois juntos conseguiram levar um temporal rumo à comitiva. Raios, ventos e trovões alcançaram a boiada. Os sertanistas foram surpreendidos, pois o tempo não havia dado sinais da tempestade formada no oceano. Alguns gados se dispersaram, mas, pela habilidade dos vaqueiros e cães, a maioria continuou unida. Os estrondos de Tupã estalavam e estremeciam a terra. Os raios alumiavam e espantavam as sombras das nuvens escuras. A água torrencial eliminou rapidamente o fogo da fogueira e transformou o chão em uma lama vermelha cor de sangue ao brilho de Tupã. Com todo o terror orquestrado pelos deuses vingativos, a vendeta era vã na resiliência dos sertanistas. A força e resistência do povo sertanejo tinha ali a sua origem. O mandacaru que envergou sob o vento forte, voltou a sua posição inicial. O umbuzeiro com a copa chegando ao chão devido à ventania parecia não suportar, contudo verdificou ainda mais. Assim são os sertanejos.

A aurora trouxe o trabalho redobrado. Os gados desgarrados foram recuperados com a ajuda do Guia Boiadeiro e os deuses aliados dos vaqueiros ficaram atentos às possíveis investidas futuras de Tupã.

O Gigante Ribamar, devorador de retirantes, apareceu no horizonte. Era o último inimigo daqueles que tentavam fugir da morte em busca do litoral, arriba ao mar. Ao avistar o gigante deitado na terra rachada, Paraíba voltou galopando e informou a Piauí para transmitir a informação para Bahia. O monstro estava dormindo, mas não podiam arriscar perder cabeças de gado logo no início da jornada. Bahia suspendeu o canto e orientou para desviarem o máximo possível ao norte. O rebanho foi sendo manejado com habilidade pelos nove vaqueiros e os cães. Até que Boca Branca, um barbatão inteiro brabo, fugiu ao sul bem em direção ao gigante adormecido. Como já eram treinados para o ocorrido, Maranhão e Alagoas galoparam no rastro do touro na caatinga espinhenta atrás do fugitivo seguidos por Cerrado e Seringueira. O gibão e chapéu arredondado de couro protegiam os vaqueiros dos perigosos espinhos de quiabento. Boca Branca era o touro mais arisco e um dos melhores reprodutores do rebanho e não poderia ficar para trás. Os dois correram lado a lado, com as cabeças próximas a crina a fim de protegerem os olhos. Maranhão alcançou o rabo do fugitivo e entregou para Alagoas que puxou o cavalo para o lado oposto e Boca Branca caiu ao chão, fazendo um estrondo despertando o Gigante Ribamar.

— Simbora, Homi. O Gigante se alevanta e vem pra cá — disse esbaforido, Alagoas.

Maranhão laçou a cabeça do touro e o parceiro ajudou a puxar de volta até o rebanho.

O Gigante Ribamar levantou-se e roncou:

— Não estão indo, mas vindo? — Estranhou o gigante acostumado com os retirantes em busca do litoral.

— Eles estão criando um caminho seguro para habitarem o sertão — respondeu Santa Maria ao Gigante.

— Não há segurança em terreno tão árido, mas eles podem passar, pois a quem entra não é problema. Só não poderão regressar.

E assim a comitiva venceu o gigante, sem saber da ajuda da Compadecida, e adentrou até o Velho Chico, que os acolheu em suas águas.

6 respostas

  1. Texto diferente de tudo que já li.
    Impressiona-me deveras a criatividade em tão pouco tempo!
    NÃO É PRA todo mundo!
    Parece uma magia que vai se espalhando à medida que você escreve.
    ENCANTADOR!
    PARABÉNS!

  2. Ouvir tudo que eu gosto com cuidado de ver e raciocinar mas eu achei uma coisa bem brasileira bem forte tirada de pessoas é uma coisa que a gente não vê hoje em dia a luta do homem pela Terra é maravilhosa
    Vou ler mais mais uma vez descobri que você é uma pessoa bem real pelos fatos que você narra e pela aquilo que você compreende é muito bom um poeta escrever aquilo que ele vê e que ele pensa é uma dádiva sua 👋👋👋👋👋👋👋👋👋👋👋👋 vou ler mais com cuidado mas amo essa maneira que o poeta escreve

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