(Paulo Esdras)

Por entre as brumas do tempo, eu estava retornando ao meu vilarejo natal. O aroma de chuva com toque amadeirado prenunciava o cheiro de meu lugar. Havia saído há muito tempo para ser engolido pelo monstro com dentes de prédios, porém o perfume peculiar de minha terra sempre me acompanhava onde quer que eu me perdesse. A estrada de terra que levava ao Vilarejo não tinha boa memória e observava desconfiada como se não reconhecesse aquele filho da terra. Sentia o odor da poluição saindo de minha alma, considerando ter sido reconhecido e aceito para retornar ao seio familiar.

Muitos anos perseguindo o excesso e o luxo fora desses domínios de simplicidade e naturalidade me tornaram cego ante o mais importante e isso já trazia comigo quando saí do Vilarejo. Lá as crianças são livres para brincar e assim aprendem sobre tudo, desde contas, gramática, artes, filosofia até valores perdidos no cinza das cidades como a solidariedade, honestidade e respeito ao próximo. A religião é o cuidar da natureza, o respeito aos animais, o carinho com os mais velhos chamados de mestres, pois são os professores do dia a dia. A política local não é feita por engravatados – a gravata lá é proibida – e sim por todos. Todas as opiniões são ouvidas e ninguém se torna inimigo por conta de pensamentos divergentes. O consenso é buscado em todas as decisões, mesmo demorando dias, meses ou anos. Para problemas coletivos urgentes, aqueles que não podem esperar a resolução por muito tempo, a maioria decide e todos colaboram, até mesmo aqueles que haviam escolhido outro caminho.

Lá tem mais bibliotecas do que farmácias, mais quadros do que telas, mais sapatilhas do que salto alto, mais instrumentos musicais do que cartões de crédito, mais artesãos do que operários. Ao invés de delegacia, uma lona de circo permanente onde as artes encantam a plateia. No Vilarejo não existe miséria, ninguém passa fome ou é abandonado nas ruas ao próprio azar. É cercado por um rio límpido, de águas cristalinas, de onde se ouve o canto da natureza feliz, abraçando todos ao redor como uma mãe. As casas, tranquilas e receptivas, sempre estão com as portas e “janelas abertas para a sorte entrar”.

 – Vou-me embora.

– Vais para onde? Tens tudo aqui!

– Não tenho futuro. Tudo aqui é do jeito que era quando nossos bisavôs estavam vivos.

– Mas eles continuam vivos, aqui nada morre!

– Não estou falando de poesia, mas da vida real! Sinto-me preso e não quero perder uma vida inteira de possibilidades. Adeus!

Fugi desse paraíso. Corri para a estrada rumo ao progresso que considerava ser progresso na época. Uma decisão imatura e ambiciosa. Não queria ser mais um naquele lugar, casar, ter filhos fortes, semear um sonho comum, tornar-me um ancião chamado de mestre pelos jovens e morrer para ser enterrado nos limites da mata verde. Desejava conhecer o mundo além dos livros, filmes, peças, fotografias. Sentir novos cheiros, novos gostos, novos sons, novas paisagens e novos toques. E, para isso, não medi esforços. Rompi com minha terra, valores aprendidos, minhas origens, amizades regadas e colhidas.

Consegui aos poucos conquistar meu espaço nas ruas sem colorido, sem natureza materna, sem rios cantantes. Cresci, passei por cima de tudo, pois agora era preciso justificar o sacrifício. Tive vitória no meu intento, pois fui respeitado, conheci o mundo, senti novos aromas, degustei de tudo, traguei a vida e abracei as oportunidades. Para aquela sociedade eu era uma pessoa de sucesso, com mais dinheiro do que podia gastar em cinco gerações, prêmios profissionais, reconhecimento pessoal e respeitado por todos.

Porém, sentia-me vazio. Estava no topo, mas sentia-me no poço. Meus sorrisos abertos eram apenas disfarces. Quem estava ao meu lado não me perguntava nem como eu estava, mas se eu podia aumentar o limite do cartão. Aqueles que se diziam amigos só me procuravam pelas bonanças e invejavam minhas posses. A falsidade era permanente ao invés da alegria que imaginava. Senti um aroma amadeirado. Lembrei-me do Vilarejo, de quando eu realmente sorria, quando tinha paz de espírito, quando era realmente amado. Foi então que decidi voltar ao meu lugar, a minha terra natal. Mas estava preso a um respirador. Um hospital luxuoso da capital, com direito à temática artística de péssimo gosto. Fui esquecido pelos filhos e abandonado por minha esposa. O último pedido dela tinha sido as senhas do banco e do cofre. Escrevi os números, mas não apenas.

– Vou embora.

– Vai para onde? Você tem tudo o que quer e precisa aqui!

– Não tenho futuro. Tudo aqui é do mesmo jeito desde sempre. Não me sinto vivo.

– Mas estamos vivos, você vai sair vivo dessa!

– Não, estou falando de poesia, mas da vida real! Sinto-me preso e não quero perder mais tempo de vida aqui. Adeus!

Agora voltando ao melhor lugar, meu vilarejo, venho reencontrar e pedir perdão a mim mesmo. Agradecer aos mestres, observar o aprendizado dos mais jovens, ouvir o canto do rio, ser abraçado pela natureza e repousar nos limites da mata verde. Sentindo o amor que envolve o presente e o passado, os vivos e os que não se foram, como eu. 

(Conto inspirado na música Vilarejo, de Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Pedro Baby)

15 respostas

  1. Como sempre, Paulo Esdras.
    Da última vez que falamos, disse-me que o nosso grande poeta, Manoel de Barros, era seu patrono.
    Hoje, Paulo nos honra com mais uma obra prima. Um conto ao seu patrono.
    Obrigado por seres Esdras/Sadres.

  2. É bem assim que sentimos ao retornar para nossa terra natal.cheiro do campo , pulmões limpos com ar puro do nosso nordeste.que bom podermos retornar.
    Amei seu texto maravilhoso como sempre.
    Um grande escritor e poeta .
    Parabéns 👏

  3. Texto Profundo, Verdadeiro e Poético…
    Faz me lembrar do retirante que abandona a vida simples para se aventurar na selva de pedras, lá desenvolve “novos hábitos”, porém, sente na pele os desafortúnios e a tristeza na alma, da distância de suas raízes.
    Ele volta para sua vida simples. Lugarzinho de onde nunca deveria ter saído, reencontrando com suas essências, sua Persona…

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