PARTE DAS MEMÓRIAS OCULTAS DO DR. JOHN H. WATSON, EX-OFICIAL MÉDICO DO EXÉRCITO BRITÂNICO

Sherlock Holmes estava intrigado. Sabia disso devido a nossa convivência de muitos casos resolvidos. Estava com seus olhos de águia fixos e imersos no problema da vez. Não queria comer, beber, tocar violino, drogas nem pensar! Já o tinha visto assim antes, evidentemente. Porém, daquele modo, confesso, ja estava a me preocupar. O caso em questão era o caso do tesouro de Miquerinos. Sim, um dos faraós homenageados pelas famosas pirâmides no Vale de Gize, a menor delas, na verdade. O tesouro, supostamente roubado de dentro da pirâmide, havia passado clandestinamente de mão em mão por compradores milionários de todo o mundo e havíamos descoberto que todos os compradores tinham morrido de forma violenta desde então. Até chegar às mãos de um inglês anônimo que, por intermédio de um advogado chamado Charles Rawlins, contratou Sherlock Holmes para a missão de descobrir o que de fato acontecia, pois a notória maldição difundida pelos faraós estava fora de cogitação. Segundo o advogado do contratante, todos os proprietários anteriores haviam morrido menos de 24 horas depois de abrirem o baú onde estava o tesouro amaldiçoado. Alguns foram assassinados misteriosamente, outros sofreram acidentes inexplicáveis. E em todos os casos a polícia não conseguiu desvendar ou prender ninguém.

– Aceita  um  pouco de chá, Sherlock?  – ofereci,  tentando  tirá-lo de seus pensamentos.

Inesperadamente deu certo.

– Não, Watson. Precisamos deixar o chá para mais tarde. Sei como desvendar este mistério.

Acompanhe-me.

Saímos da Baker Street por volta das dez da manhã e fomos direto para o escritório de Rawlins, onde o misterioso contratante havia deixado o tesouro num cofre especial.

Já havia me acostumado com a característica autoritária de meu amigo em esconder seus planos para solucionar os crimes até o momento da revelação completa, mas realmente aquele caso em especial estava aguçando a minha curiosidade. “Como o caso será desvendado indo ao escritório do próprio advogado de nosso contratante?”. Era uma pergunta que seria em breve respondida.

A carruagem estacionou defronte a bela casa que servia de escritório de advocacia. O portão foi aberto pelo próprio advogado:

– Sr. Holmes, dr. Watson! Sejam bem-vindos ao meu humilde escritório. Entrem, por favor.

Entramos e fomos a uma sala de estar no andar térreo. Sherlock dispensou as amenidades e foi direto ao ponto:

– Sr. Rawlins, precisamos ver o tesouro.

Fez-se um silêncio sepulcral de um segundo antes que o advogado respondesse:

– Mas o meu cliente pediu-me para que o tesouro ficasse protegido de…

– Eu sei – cortou Sherlock abruptamente. – Mas ele também me contratou para desvendar um mistério e eu preciso ver o tesouro para confirmar uma tese.

Rawlins olhou-me como para ver a minha aprovação e, depois de observar meu semblante impassível, respondeu:

– Claro, sr. Holmes. Acompanhe-me até o cofre.

Seguimos o advogado por um corredor e uma escada guardada por um homem alto e de corte de cabelo militar. Nao vi nenhuma arma, mas, com certeza, era um segurança. Subimos os degraus e logo acima havia um corredor superior com outro segurança de sentinela próximo a uma porta metálica. O cofre, na verdade, era um cofre-forte do tamanho de uma sala. Sherlock balbuciou para mim enquanto o advogado abria a porta:

– Se não quiser entrar, entenderei. Pode aguardar-me aqui no corredor.

– E deixarei você ver sozinho um dos tesouros faraônicos mais procurados do mundo?

Após eu responder com o mesmo tom de voz, ele sorriu e entramos na sala fortificada. O chão, as paredes e o teto eram de ferro. Em cima de uma mesa apenas um baú. Rawlins enfim disse:

– Irei retirar-me para deixá-los abrirem o baú. Mas não posso furtar-me de informá-los … todos que abriram para olharem o tesouro acabaram morrendo.

– Ótima chance de sair, Watson –  gracejou o cético Sherlock.

Quando o advogado saiu, Sherlock abriu o baú sem cerimônias. Confesso que, apesar de minha longa carreira como médico e devotado à ciência, não consegui olhar para dentro do baú. Desviei o olhar para as paredes frias da sala. Sherlock deve ter reparado, ou deduzido, já que começou a descrever em voz alta:

– Papiros, papiros, uma pedra bruta, um punhal, um pedaço de osso… talvez um fêmur. Nenhuma joia ou coisa de valor material. O tesouro é valioso para registro histórico e deveria ser também para Miquerinos, pois foi enterrado com ele.

Eu estava desconfortável na sala. Como se estivesse ficando sem ar. Sherlock fechou o baú, foi em direção à porta de saída e deu três leves batidas. Acompanhei a fim de sair dali o mais rapidamente possível. A porta foi destrancada e aberta pelo advogado, que estava com um semblante grave.

– Conversei com o meu cliente. O senhor agora tem 24 horas.

Sherlock não comentou se tinha conseguido algo após ver o tesouro de Miquerinos. Mas seu semblante era diferente daquela manhã. Convidou-me para almoçarmos, coisa que ele não fazia desde que havia sido contratado para o caso. No almoço, não perguntei diretamente o que ele havia descoberto, mas questionei:

– O advogado te deu 24 horas para desvendar o caso. Será que conseguiremos?

– Elementar, meu caro Watson. Mas ele não nos deu este tempo para solucionarmos o mistério. O nosso contratante é um crédulo e realmente acredita que morrerei nestas próximas 24 horas, assim como o sr. Rawlins também acredita na maldição.

Fiquei preocupado, mas não revelei. Pelo sorriso de Sherlock ao olhar para mim, nem precisei revelar.

– Calma, meu amigo. Sou imune às maldições.

Chegamos no 22lB da Baker Street apenas duas horas da tarde e Sherlock não descansou após a refeição. Assim que entramos em casa, Holmes parou diante da porta, enquanto eu já retirava o chapéu e o casaco. A expressão dele era de perplexidade.

– O que aconteceu, Sherlock? Você está bem?

– Alguém entrou aqui enquanto estivemos fora.

Olhei o trinco da porta e as janelas. Nenhum sinal de arrombamento. Quando retornei, Sherlock estava agachado no chão da sala.

– Sherlock, sem sinal de arrombamento. Como sabe que…

– Alguém fumou aqui dentro.

Olhei para o chão em frente dele e vi que havia retirado cinzas do tapete.

– Fumaram do meu fumo – Holmes disse correndo ao estoque de tabaco e segurou o cachimbo que estava acima da mesa, no mesmo lugar que o havia deixado.

– Alguém entrou aqui e apenas fumou o seu cachimbo?

– Não. Não foi do meu cachimbo, pois está frio. E nem pegou do meu estoque, já que está intacto. Mas definitivamente é o mesmo fumo que uso.

Sherlock olhou para o teto e questionei:

– Soube isso pelo cheiro? Mas você fuma aqui dentro sempre!

– Não foi pelo cheiro, mas pelas cinzas achadas no tapete. O invasor ainda está aqui – alertou Sherlock apontando para o teto, que tinha alguns furos sutis de observação que Holmes havia feito há algum tempo; e apontou também para o suporte da espada de esgrima e completou – e está armado.

A espada tinha sumido. Holmes era um excelente esgrimista desde jovem e, por falta de sua espada, pegou um atiçador de 60 centímetros da lareira. O alçapão do sótao abriu-se e um homem saltou de lá. Fiquei paralisado ao perceber que o invasor na verdade era Holmes segurando duas espadas de esgrima. Confuso, olhei para Sherlock ao lado da lareira e mirei de volta ao Holmes com as espadas. Eu estava atônito.

– Finalmente um oponente à altura – zombou Sherlock com o atiçador em riste.

–  Pelo visto não possui uma espada de verdade. Não seria justo vencê-lo em tamanha desvantagem – caçoou o Holmes que acabara de saltar do alçapão antes de jogar uma das espadas para Sherlock. Este pegou a espada fornecida e deixou de lado o atiçador.

A luta iniciou frenética. Os dois estavam vestidos exatamente iguais, inclusive quando, na luta, o chapéu de um deles caiu, o outro retirou o próprio com um sorriso, que parecia ser do Holmes verdadeiro.

Eu quase intervi no combate, mas fui interrompido pelos dois simultaneamente. Era um duelo e ninguém poderia ferir essa regra, com pena de ser executado. Em meio ao embate ouvia um diálogo que

confirmaria a tese do detetive: “Então o tesouro é uma espécie de portal?”, “Existe um plano espelhado?”, “Quem sobrevive pode retornar ao plano original?”. E todas essas perguntas seguidas da confirmações do espelho. Sherlock se fez de isca para confirmar sua tese. Ele não estava descrente sobre o poder do tesouro de Miquerinos, mas sim de que este poder fosse de alguma maldição.

Foi quando eu ouvi com um arrepio na espinha:

Touché!

Alguém havia sido tocado pela espada. Ao ver um dos Sherlocks desaparecer como poeira ao vento, observei o vencedor com aquele sorriso no rosto.

– Foi o melhor oponente que enfrentei, meu caro Watson. Ele também me atingiu, mas não foi nada grave. Parece que o corpo dele retornou para o plano espelhado.

Corri para verificar o ferimento dele. Foi uma perfuração no braço e um arranhão profundo no rosto.

– O que diabos foi isso, Sherlock?

– Existem coisas que não são explicáveis, Watson. Apenas diremos que foi um invasor que lutou comigo e fugiu em seguida. Para nosso contratante, diremos apenas que o tesouro realmente é amaldiçoado e deve ser incinerado para não contaminar todas as suas gerações.

Eu jamais esqueci daquele caso, que foi o primeiro de muitos outros casos sobrenaturais, mas fui aconselhado pelo próprio Sherlock Holmes a manter segredo sobre eles, pelo menos, por cem anos para não comprometer as pessoas envolvidas.

Uma coisa estranha daquele dia, que relembro agora, foi após a luta Sherlock ter lavado as mãos apressadamente. Achei estranho na época, mas não refleti. Agora me vem a cabeça: será que foi o Sherlock real o que sobreviveu ao duelo?

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*Dia 22 de maio é o Dia dedicado em homenagem ao personagem Sherlock Holmes, data do aniversário do autor Sir Arthur Conan Doyle. Paulo Esdras escreveu “O Caso do Tesouro de Miquerinos” para o concurso nacional “Os Casos Ocultos de Sherlock Holmes”, da Cartola Editora, lançado em 2020 para contos sobrenaturais do famoso investigador inglês.

2 respostas

  1. Achei o conto super criativo, que mistura mistério clássico com um toque sobrenatural, deixando a gente preso do começo ao fim! Parabéns!

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